Não quero parecer pessimista nem agourento, mas essa pode ser a última oportunidade de assistir a um show de Roger Waters. No Brasil, dificilmente vai rolar outro. O cara já veio três vezes para cá, virou um nativo, esgotou os cartuchos. Duvido que aconteça, ainda que a lotação esgotada e os milhões de dólares de faturamento possam amolecer seu coração e fazê-lo voltar atrás em um futuro próximo. Em outros países as chances também são remotas. Aos 68 anos, Waters disse que vai se aposentar, acabar com suas grandes turnês megalômanas para levar uma vida mais tranquila. Ou seja, quem viu, viu, quem não viu tem a chance de ver hoje. A expectativa é que 218 mil brasileiros vejam a recriação do espetáculo The Wall, que havia sido apresentado apenas 29 vezes entre 1980 e 1981 e em julho de 1990, em Berlim. Ainda há ingressos à venda e seria uma decisão inteligente se mandar para os lados do Morumbi e garantir um lugar na arquibancada do estádio, a partir de 180 reais – ou, preferencialmente, na pista, a partir de 450 reais. Em um rompante roqueiro, gastando um dinheiro razoável, você seria mais feliz.
Ver The Wall vale a pena. É uma experiência alucinante. É um show grandioso, pensado em cada detalhe, cheio de história e altamente convincente na sua proposta transformadora. É um verdadeiro simulacro de revolução. Na hora em que os primeiros acordes começam a soar, um ouvinte de idade avançada como eu retorna à adolescência e uma vibração guerrilheira toma conta do público, mesmo dos mais jovens. Muita gente começa a chorar e se sente derrubando muros e arrebentando o “sistema” quando ouve Another Brick in the Wall. De repente você percebe que faz parte de uma humanidade oprimida, mas que pode se rebelar e quebrar os grilhões do poder. Contra os exploradores, contra as ditaduras, abaixo a educação repressora e os manipuladores. Viva Jean Charles, o homenageado dessa turnê. Viva aqueles que sucumbiram na 2ª Guerra Mundial. Segunda Guerra Mundial? Viva Waters.
Decidi ver o show porque não poderia deixar de assistir aquela que talvez seja a última apresentação de um de meus poucos heróis que não morreram de overdose e ainda resistem na ativa. Sinto por Syd Barrett, um cara mais genial do que Waters que sucumbiu. E lamento por todos os roqueiros que tombaram precocemente em sua luta hedonista e ensandecida para chegar na terceira idade e ganhar uma nota preta com shows grandiosos. Mas Waters resistiu, driblou os velhos camaradas do Floyd e colocou seu circo de pé – convertendo sua fúria musical em um dos empreendimentos mais milionários do rock’roll. Sustentou a crença na sua própria genialidade e conseguiu se apropriar completamente de uma obra que é quase sua e está comemorando 30 anos.
Não fosse, por exemplo, a fundamental guitarra de David Gilmour da gravação original, diria que The Wall seria só de Waters. Ele faz seu público esquecer do Pink Floyd, assim como ele mesmo esquece. Você pensa claramente que o fodidão ali é ele, que o Floyd só foi o que foi por causa dele. Era dele a força experimental do grupo – algum fanático suporia depois de assistir The Wall. Mas Richard Wright e Nick Mason não contam? E Barrett, que morreu em 2006 e era o mais brilhante e carismático de todos? Acabou engolido pelos efeitos do ácido lisérgico e por seu próprio psicodelismo. Mesmo assim, completamente desajustado, morando com a mãe em uma casinha de subúrbio, terminou a vida com mais de um milhão de libras na conta graças aos ganhos de direitos autorais do Floyd sobre músicas gravadas até 1969, quando pirou. O Floyd sempre foi um grande empreendimento. E Waters mantém a tradição com essa última turnê. Faz um fabuloso show de tiozão que vai ficar na história nos próximos meses, como qualquer grande show de rock.
Não conseguia parar de pensar em Barrett quando Comfortably Numb começou a soar. Na pista, do lado esquerdo do palco, vi aquelas luzes brilhantes e aqueles tijolos vermelhos projetados no megapalco e pensei que Barrett faria um outro The Wall. Teria sido um líder de banda muito mais generoso e menos centralizador. Faria um espetáculo mais humilde, talvez. Por um segundo achei que Waters fosse Barrett enquanto cantava os versos The child is grown/The dream is gone/And I have become/Comfortably numb. Muito louco. The Wall só emociona uns caras mais velhos como eu, cheios de imaginação e traumas de guerra. O mais típico imaginário do século 20 aflora nas suas canções.
Fiquei vidrado no telão, com os olhos encharcados de lágrimas, vendo um Waters grandioso dedilhando seu baixo e cantando. De repente caí na real e concluí que essa grandiosidade tem um lado careta. Bebi meu guaraná e pensei que ele é só um baixista querendo ser Tutankamon. É um cara legal, um astro gente fina, mas talvez essa decisão de se aposentar tenha algo a ver com sabedoria. Ele sabe que esses shows gigantescos já não têm mais nada a ver. São coisas do passado. O Pink Floyd inventou e diluiu essa fórmula. E Waters já ganhou toda grana que precisa. Foi-se o tempo desses grandes delírios psicodélicos e de rebeliões simuladas. Mas todo mundo deveria assistir um espetáculo como The Wall pelo menos uma vez na vida. Só para saber como é. E ainda dá tempo de ver o último show na turnê The Wall no Brasil. Começa às 21 horas no estádio do Morumbi. Pode ser sua última chance.
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